segunda-feira, 5 de março de 2012

Esclarecimento


Helena Novais — mhelenanovais@gmail.com

O século XVIII é lembrado como uma época de grandes transformações. Em meio a um cenário turbulento, marcado por convulsões sociais, políticas, religiosa e inovações tecnológicas, a intelectualidade burguesa reuniu-se em um movimento que ficou conhecido como Ilustração.

Os pensadores da época viam na razão e no livre debate de ideias o caminho para o esclarecimento que, por sua vez, levaria ao progresso da humanidade. Refutavam, portanto, todas as formas de autoritarismo e obscurantismo que contribuíssem para manter os homens na menoridade intelectual, entendida como “inabilidade de usar seu próprio entendimento sem qualquer guia” (KANT, 2009, Online).

No entanto, o desenvolvimento do Iluminismo esbarra na religião e na política, pois estas rechaçam a crítica que é o fundamento básico de todo o movimento iluminista. Neste momento histórico, o conhecimento procura desvincular-se da intervenção da igreja, que com seus dogmas mantinha a humanidade na ignorância, e do controle estatal, que estabelecia as condições necessárias à manutenção das elites no poder. O homem deveria deixar a menoridade intelectual, e, libertando-se da tutela da religião e da política, assumir a responsabilidade por sua própria existência.

Nossa época é propriamente a época da crítica, à qual tudo tem de submeter-se. A religião por sua santidade, a legislação por sua majestade, querem comumente esquivar-se a ela. Mas desse modo suscitam justa suspeita contra si e não podem ter pretensões àquele respeito sem disfarce que a razão somente outorga àquilo que foi capaz de sustentar seu exame livre e público. (TORRES FILHO, 1987, p. 84)

Kant enfatiza o caráter ético do esforço de ilustrar. As atitudes autoritárias eram vistas como preconceitos inibidores do livre exercício da razão que cabe, por direito a todos os homens.

Embora a França tenha sido o principal foco do pensamento ilustrado, o movimento também tornou-se significativo na Inglaterra e na Alemanha (cuja unidade política encontrava-se em formação). ABRÃO (2008, p. 140) conta que em Berlim, então capital da Prússia, reinava Frederico II, um monarca esclarecido que, amigo de Voltaire e outros intelectuais franceses de vulto, decidiu fundar na cidade uma Academia de Ciências, nos moldes da que então existia em Paris. Assim, Frederico II favoreceu a formação de um ambiente intelectual onde floresceram ideias sobre Matemática e Física, Geografia e Economia, onde eram lidas obras de Filosofia e discutidos conceitos relativos à estética e à arte.

Em Berlim circulava o Mensário Berlinense (Berlinicher Monatschrift), publicação do círculo de intelectuais membros da Sociedade dos Amigos da Ilustração (Sociedade das Quartas-Feiras), fundada por Johann Erick Biester. Este é o autor de um primeiro artigo que deu início ao debate ao qual Kant respondeu com seu texto Resposta à pergunta: que é a Ilustração?. (TORRES FILHO, 1987).

Em 1785, Biester publicou Proposta de Não Mais dar Trabalho aos Eclesiásticos na Consumação do Matrimônio. Nele afirma que para ilustrados são desnecessárias as cerimônias religiosas. Em resposta, Johann Friedrich Zöllner fez publicar, no mesmo Mensário Berlinense, seu artigo Será aconselhável não mais sancionar o vínculo matrimonial pela religião?. Zöllner argumenta que “não é pudente desvalorizar a religião em todos os assuntos profanos e, desse modo, ‘sob o nome de Ilustração, confundir as cabeças e o coração dos homens’”. (ZÖLLNER apud TORRES FILHO, 1987, p. 88).

Para Zöllner, é preciso ilustrar, mas sem tomar a Ilustração como pretexto para estabelecer a anarquia, não colocando a perder as conquistas da própria Ilustração (TORRES FILHO, 1987, p. 88). Em outras palavras, Zöllner coloca em questão a Ilustração, pergunta sobre o que ela seria e quais seus limites, convoca os ilustradores a investigá-la. Assim, o esclarecimento volta-se sobre si mesmo, em um momento de auto-análise.

Em seu artigo, Kant responde as questões levantadas por Zöllner, tomando a Ilustração como objeto de reflexão. Seu texto começa por apresentar uma definição formal do conceito de Ilustração: “Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade auto-imposta” (KANT,2009, Online). O filósofo defende o pensamento não tutelado, o uso livre da razão. Kant procura demonstrar sob quais condições e dentro de que limites a Ilustração se justifica.

Por outro lado, TORRES FILHO (1987) faz uma análise do ensaio de Kant considerado outros escritos desse filósofo, como Prolegômenos de Toda Metafísica Futura, Crítica do Juízo, Crítica da Razão Prática e especialmente A Crítica da Razão Pura. Estabelecendo relações entre métodos de formulações de conceitos feitas pelo filósofo, explica que Kant procurou uma definição-guia, ou seja uma definição transcendental que guiasse sua análise, pois ela deveria se aplicar a todas as situações e circunstâncias (históricas, geográficas, etc.). Em outras palavras, independentemente da Ilustração ocorrer ou não é preciso que o conceito continue válido.

Para ele TORRES FILHO (1987), o texto de Kant se desenvolve em uma sequência que responde a três perguntas:

1. O que é a Ilustração?
Parte introdutória e conceitualmente analítica. Conduz da definição de Ilustração até a afirmação de que seu único requisito é a liberdade.
2. Qual restrição da liberdade é obstáculo à Ilustração?
Trata-se da parte que serve de eixo à argumentação e é dirigido no sentido de responder a questão levantada por Zöllner (Quais os limites da Ilustração?).
3. Vivemos agora numa época Ilustrada?
Remete à afirmação de Biester, “para ilustrados não são necessárias essas cerimônias”. Kant refuta: “será que podemos considerarmo-nos ilustrados?”. E responde: “não, mas vivemos em uma época ilustrada”.

Kant acreditava que havia um campo aberto para que se trabalhasse para chegar a uma época ilustrada, pois diminuíam as restrições à liberdade. Na Prússia o esclarecimento era representado por um monarca Ilustrado, Frederico II, que não via perigo em permitir que seus súditos fizessem uso público de sua razão e publicassem suas críticas às leis básicas existentes, pois garantia a ordem estatal por força da ordem estabelecida nos espaços privados.

O esclarecimento, segundo Kant, estaria garantido pelo obediência a que se devia atender nos espaços privados e pelo livre uso da razão e divulgação de ideias nos espaços públicos. Assim, a sobrevivência do Estado não estaria ameaçada e nem a liberdade, condição primeira do esclarecimento.
 

Referências Bibliográficas

ABRÃO, Bernadete Siqueira et al. Enciclopédia do Estudante: história da Filosofia, da antiguidade aos Pensadores do Século XXI. São Paulo: Moderna, 2008.

HOFFE, Otfried. Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: que é Ilustração? Disponível na Internet em <http://www.estef.edu.br/pessoais/arquivos/estef_pessoal_06_08_2005_17_05_15_Resposta%20a%20pergunta.doc>. Acessado em 10.04.2009.

TORRES FILHO, Rubens Rodrigues. Ensaios de Filosofia Ilustrada. São Paulo: Brasiliense, 1987, pp. 84-101.

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